quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Ex-diretor da Aneel vê Cesp e Cemig prejudicadas

O advogado Julião Coelho exerceu, durante três anos e sete meses, o cargo de diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Com mandato terminando em dezembro, ele resolveu antecipar sua saída e deixou a agência no mês passado, o que gerou alívio para quem evitava posições claras e polêmicas. Antes de pegar o avião para San Francisco, onde fará um mestrado na Universidade de Berkeley, ele falou ao Valor sobre o que julga ser um aumento da percepção de risco dos investidores no setor. Na bagagem para os Estados Unidos, Julião levará uma discordância com o governo: ele reconhece a "justa expectativa" de direito da Cemig e da Cesp em prorrogar os contratos de concessão das usinas pela primeira vez, como fizeram todas as outras empresas até publicação da MP 579, com o aval do Ministério de Minas e Energia. A medida provisória permitiu a redução média das contas de luz em 20%, mas fez derreter o valor das ações das elétricas. Ele ainda vê chances de que as empresas revertam, na Justiça, o fim das concessões.

"Sob o ângulo jurídico, podem falar que é mera expectativa de direito, mas essa é uma noção do século retrasado", diz Julião, referindo-se ao caso de usinas como Três Irmãos (Cesp) e Jaguara (Cemig). As duas empresas alegavam ter o direito, pela legislação anterior, de renovar seus contratos. O governo teve outra interpretação. Com a recusa das companhias em prorrogar suas concessões em novos termos, as usinas deverão ser devolvidas à União e relicitadas. "Respeito aos contratos é o mínimo de uma sociedade civilizada. Não é mérito, é o básico. Precisamos ir além disso. Devemos ter o cuidado de, na medida do possível, preservar expectativas. Sobretudo se essas expectativas são fundamentadas em atos nossos. Um conjunto de atos, reiteradamente praticados numa mesma linha, induz a uma expectativa", afirma Julião. A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: A sua saída da Aneel se deu em meio ao quebra-cabeça em que se transformou a regulação do setor elétrico. Que avaliação o sr. faz das mudanças?
Julião Coelho: Concordo com a medida provisória [MP 579] que reverteu usinas e linhas de transmissão já amortizadas em favor da redução de tarifas. Isso foi mais do que oportuno. Temos um parque gerador em expansão, com custo da energia mais caro, superior ao da energia existente. Reverter essa depreciação em favor da modicidade tarifária era necessário para equilibrar o aumento propiciado pela entrada de novos empreendimentos. Então, a essência da MP era boa. Tivemos um problema na falta de debate.

Valor: Que tipo de falta de debate?
Julião: Houve uma ou duas questões que aumentaram a percepção de risco no setor. Uma foi previsão de que os ativos de transmissão, anteriores ao ano 2000, não seriam indenizados. Isso acabou sendo resolvido. O outro assunto foi o das usinas de geração, que ainda podiam ter uma prorrogação das concessões com base na legislação vigente, antes da MP 579. Em casos anteriores, a Aneel recomendou e o ministério prorrogou essas concessões. Portanto, os titulares das usinas tinham uma justa expectativa, uma legítima expectativa de que teriam as concessões prorrogadas.

Valor: O sr. se refere aos casos da usina de Três Irmãos, da Cesp, e das hidrelétricas da Cemig?
Julião: Exato. Daquelas que ainda tinham a possibilidade de renovação pela antiga lei. Quando fui questionado sobre esse assunto, tratei de não levar uma opinião jurídica, mas regulatória. Em um país que se quer civilizado, que pretende atrair investimentos e que deseja impulsionar o desenvolvimento, não basta respeitar contratos. Respeito aos contratos é o mínimo de uma sociedade civilizada. Não é mérito. É apenas o básico. Precisamos ir além disso. Devemos ter o cuidado de, na medida do possível, preservar expectativas. Sobretudo se essas expectativas são fundamentadas em atos nossos. Um conjunto de atos, reiteradamente praticados numa mesma linha, induz a uma expectativa.

Valor: A Cesp e a Cemig podem reverter, na Justiça, o fim das concessões de suas usinas?
Julião: Sob o ângulo jurídico, podem falar que é mera expectativa de direito, mas essa é uma noção do século retrasado. No mundo atual, a gente sabe que o capital é volátil, porque você precisa atrair investimentos. A percepção de risco é fundamental: ou o capital não vem, ou ele exige um retorno muito alto para vir. Convinha ter ponderado o aumento dessa percepção quando se decidiu impedir a prorrogação das concessões dessas últimas usinas. No setor de capital intensivo, o incentivo deve ser para médio e longo prazos, com sinais de comprometimento. Não basta só respeitar contratos, mas assegurar expectativas.

Valor: O sr. avalia que é recorrente essa falta de sensibilidade para o aumento da percepção de risco no setor elétrico?
Julião: Sim, inclusive há outro exemplo recente que tem gerado judicialização. É o caso do mecanismo criado pelo governo para dividir o custo adicional de geração pelas usinas térmicas com o mercado de compra e venda de energia no curto prazo. A regra anterior não incentivava a contratação de longo prazo, que é justamente o que viabiliza a expansão. Foi, portanto, uma boa medida. O problema está na transição. Colocaram geradoras e comercializadoras para bancar o custo das térmicas no momento em que o preço da energia estava alto, devido ao baixo volume nos reservatórios das hidrelétricas. Esse transtorno fez a questão parar na Justiça. Isso prejudicou a identificação do mérito da proposta.

Valor: Então faltou diálogo?
Julião: Ocorreu o mesmo problema da MP 579. O setor elétrico, em razão do processo decisório da Aneel, se acostumou com o debate prévio à tomada de decisão. Aí, quando vem uma MP como essa, ou a resolução do CNPE [que trata do rateio do custo de acionamento das térmicas], sem nenhum tipo de discussão com a sociedade e com os agentes, o setor se surpreende. A discussão não é formalismo. Ela permite o aprimoramento dos atos. Isso tem acontecido na Aneel.

Valor: Como está a autonomia decisória da agência? Há conflitos com o Ministério de Minas e Energia? Ou isso é mito?

Julião: Os diretores têm todas as prerrogativas necessárias, inclusive mandato, para serem independentes. Se não são, é porque não querem. Em um setor tão complexo como o elétrico, com um emaranhado de regulamentos, sempre haverá zonas de sobreposição. Eventualmente, há discussões e divergências, mas não ocorreram interferências do ministério na Aneel. A não ser que faça uma escolha própria, pessoal, um diretor da agência dispõe de todos os meios para se manter independente. A presidenta Dilma e o ministro Lobão respeitam muito a agência e o modelo regulatório.

Valor: Depois que o sr. e Nelson Hubner saíram da agência, ela ficou com apenas três diretores. A Aneel corre o risco de parar?
Julião: Parar não, mas não há mais espaço para divergências. Me explico: as decisões da Aneel, para serem tomadas, precisam sempre de pelo menos três votos. Então, com apenas três diretores, todos têm poder de veto. Todas as decisões precisam de unanimidade. Isso contraria a essência de um colegiado, que pressupõe o exercício da divergência. Para isso, teremos que aguardar a indicação de novos diretores.

Valor: A Aneel é tida como um modelo de transparência entre as agências reguladoras. O sr. concorda?
Julião: Chegamos a um bom estágio de transparência, mas é sempre possível melhorar. Desde julho, as decisões da agência começaram a passar por uma análise de impacto regulatório. Ou seja, os atos normativos devem ser precedidos não só de uma análise jurídica ou técnica, mas também de uma análise econômica, que busca antecipar os efeitos das decisões. Outro ponto em que podemos avançar é no acompanhamento eletrônico dos processos, como nos tribunais. Hoje, há uma burocracia envolvida, você precisa ir na Aneel e pedir uma cópia. (Valor Econômico)
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