sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Mercado livre não se livra dos defeitos

Um setor como o elétrico, com investimentos significativos e de longo prazo de maturação, tem grande aversão a instabilidades e mudanças de regras. Em muitos países, a previsibilidade de receita, típica dessa atividade, produz a expectativa de baixo risco e retornos menos audaciosos.

O Brasil tem apresentado uma assombrosa combinação desses defeitos no seu mercado livre. Fruto de uma complexa e inédita adaptação de mercados genuínos de energia, o nosso PLD (Preço de Liquidação de Diferenças) apresenta uma incrível instabilidade, onde é possível observar diferenças de mais de 5.000 % entre valores extremos. Basta uma comparação com alguns conhecidos mercados para constatar que há algo errado com o nosso.

Entre 2003 e 2014, enquanto o Nordpool (Suécia, Noruega, Dinamarca e Finlândia) oscilou entre € 30 e € 130/MWh, o nosso variou entre € 5 e € 250/MWh. O PJM (13 estados americanos) assumia valores entre US$ 40 e US$ 130/MWh e o nosso entre US$ 7 e US$ 370/MWh. O que é estranho é que tratamos esse volúvel comportamento como “parte da paisagem” sem ir à origem.

Autoridades não querem reconhecer as falhas do critério, que implicariam a revisão das Garantias Físicas de todas as usinas

Essa variabilidade sempre foi conhecida e é fruto da singularidade do nosso sistema. O PLD não é igual aos “spot prices” dos mercados citados. Lá, os valores são obtidos de curvas de demanda e oferta. Aqui, o nosso PLD é um nome diferente para o Custo Marginal de Operação (CMO), um parâmetro do operador do sistema. A razão disso é que nossas usinas não comercializam a sua geração, mas sim uma avaliação quantitativa do seu desempenho na produção total do sistema denominada Garantia Física (GF). Assim, a diferença entre a geração real e a GF deve ser liquidada. Como essas defasagens podem ser significativas, o PLD passa a ser um “paradigma” de preço de mercado, o que é muito ruim, pois “importa” para um mercado de energia a instabilidade que se observa no CMO.

Para enfrentar esse “mercado nervoso” a Aneel alterou seus limites. Em vez de R$ 822,83/MWh, o PLD máximo passa a ser R$ 388,04 e o PLD mínimo passa de R$ 15/MWh a R$ 30,26/MWh.

Como todo custo, o CMO deve ser pago e, consequentemente, superando o novo teto, ele passa a se chamar Encargo de Serviço do Sistema (ESS) e terá que ser pago por todos os consumidores. Ora, se custos não evaporam, qual a utilidade de se alterar os limites? É uma redução forçada da instabilidade, mas não está desconectada dos erros de avaliação do governo.

Em 2012 terminavam os contratos firmados em 2004 cujos baixos preços foram bastante influenciados pela sobra de energia, fruto do encolhimento da carga pós-racionamento. Esses contratos deveriam ser substituídos e não foram. Contando com algo duvidoso, o governo imaginou que todas as empresas aceitariam a dura proposta de prorrogação das concessões, onde, além de indenizações insuficientes, foram impostas “tarifas” muito baixas de operação e manutenção. A Eletrobras, por óbvias razões, foi a única a aceitar. Copel, Cesp e Cemig fizeram as contas e perceberam que seria altamente inconveniente. Resultado: distribuidoras descontratadas em aproximadamente 2.100 MW médios e sujeitas ao nosso caro spot.

Continuando a subestimar o desequilíbrio do sistema, o governo também avaliou errado o interesse das geradoras em participar de um leilão em junho de 2013. Ficando vazio, as contas a pagar ficaram insustentáveis. A descontratação em 2014 (2.500 MW médios), com o PLD rondando o teto, agravou ainda mais a situação.

Num setor que deveria se sustentar, o Tribunal de Contas da União (TC 011.223/2014-6) mostra que o prejuízo já atinge R$ 61 bilhões (sem contar outros danos às próprias geradoras) com aportes do Tesouro e empréstimos bancários. Uma escalada de prejuízos que equivale a quatro usinas do rio Madeira e que ainda não terminou.

Mas, o foco desse artigo deve ser outro. O que deveria estar em debate não é o limite subjetivo de preços e sim o critério de segurança do sistema, pois ele é traduzido tecnicamente no CMO, origem genética do PLD.

É importante enfatizar que o setor elétrico brasileiro deveria saber lidar com sequências de anos mais secos porque o seu histórico mostra esse evento. A série recente está longe desse desafio, pois 2011 apresentou hidrologia de 120% da média, 2012, 87%, 2013 foi um ano médio e 2014 ainda não é o pior registro do histórico. Por que esvaziamos tanto os reservatórios?

Uma das causas do esgotamento foi a política de expansão térmica que acabou privilegiando caras usinas a óleo e diesel. Contabilizadas na oferta, mas inconvenientes no encarecimento da tarifa, elas acabam por exigir mais das hidrelétricas que precisam gerar no lugar delas. Em 2000, 83% da capacidade instalada eram de hidráulicas, responsáveis por 93% da energia consumida. Dessa data até 2012, essa proporção caiu para menos de 70%, mas elas continuaram a gerar cerca de 90% da carga por todo esse período. Aqui, a formação de preços do CMO está por trás das escolhas.

Antes de setembro de 2012, as térmicas respondiam por aproximadamente 9% da carga. Após a edição da MP 579, que anunciou uma redução de 20% da tarifa, elas passaram a gerar 20% da carga. Coincidência? Despacho econômico? Difícil saber, mas certamente estaríamos com mais alguns GWh reservados se a formação de preços do CMO fosse outra.

A mudança dos limites vai aliviar um pouco o caixa das distribuidoras. Será condizente com o aperto fiscal que deverá vir, quando o governo não poderá usar o Tesouro para outros socorros. Mas estamos longe do núcleo. As autoridades parecem não querer enfrentar a consequência de reconhecer as falhas do critério, já que elas implicariam a revisão das Garantias Físicas de todas as usinas do sistema, o que afetaria o interesse comercial de todos os agentes.

Podemos ir adiante sem tocar no assunto e sermos salvos por São Pedro, mas, certamente, outra crise irá nos pegar mais à frente. (Valor Econômico / Roberto Pereira d’Araujo)
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