terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Crise sem tamanho exato

Diante de uma crise energética para a qual o governo ainda estuda soluções, especialistas afirmam que informações defasadas sobre a capacidade do sistema elétrico nacional e modelos desatualizados para avaliar a oferta e demanda de energia no país dificultam o conhecimento sobre o tamanho exato do problema. A crise, alertam, pode ser até mais grave do que parece. Segundo analistas, o governo e o próprio mercado desconhecem o volume exato de água que as hidrelétricas brasileiras usam para gerar energia. Além disso, o consumo de eletricidade no país avançou menos do que o previsto, e as chuvas foram de 87% da média histórica nos últimos três anos, o que contrasta com o argumento do governo de que a seca é a principal vilã da crise.

E, segundo Luiz Pinguelli Rosa, diretor da Coppe/UFRJ e ex-presidente da Eletrobras, o país só tem água armazenada nos reservatórios do Sudeste para um mês de geração de energia, um patamar mais baixo do que antes do racionamento de 2001. Os reservatórios do Sudeste/Centro-Oeste estavam em 16,78%.

Acredito que não teremos como escapar do racionamento disse.

Não é conhecida, no entanto, a medida exata da capacidade de produção das hidrelétricas essas velhas senhoras, como a presidente Dilma Rousseff já se referiu a essas usinas, que chegam a ter mais de 70 anos. Segundo especialistas, a decisão do Ministério de Minas e Energia (MME) de prorrogar de 2015 para 2016 a revisão de garantias físicas das hidrelétricas a quantidade máxima de energia que as usinas podem comercializar contribui para que não se saiba o volume exato de água que as hidrelétricas consomem para gerar energia, nem sua capacidade real de produção.

Risco de perda de receita para empresas
A revisão das garantias deveria ter sido feita há mais de dez anos. Na prática, essa checagem funciona como uma atualização das condições reais de produtividade das usinas. Os parâmetros para o cálculo, definidos pelo MME, incluem a data de construção, o número de turbinas e a vazão do rio, entre outros fatores.

Sem essa checagem, o governo imagina operar uma usina zero quilômetro quando, na prática, ela pode estar consumindo mais água para gerar energia. A falta dessa revisão torna mais crítico o controle da vazão dos reservatórios, especialmente num momento de falta de chuvas e em que o risco de déficit de energia é mais alto.

Um especialista no setor elétrico avalia que as distorções podem estar prejudicando o controle dos reservatórios pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). Segundo esta fonte, as geradoras estão familiarizadas com a situação, mas preferem não se expor ao risco de perda de receita com uma eventual revisão para baixo da garantia física das usinas. Em 2001, uma revisão feita para a hidrelétrica de Itaipu, por exemplo, levou a uma redução significativa de sua receita.

Durante anos essa revisão foi postergada porque não percebíamos essas distorções em anos de hidrologia favorável. Mas, o fato de os reservatórios estarem mais vazios ao fim de 2013, em um cenário normal de chuvas, já mostrava que algo estava errado disse ele.

País tem déficit de 2 mil mw, diz consultoria
Antes do dia 30 de dezembro de 2014, quando prorrogou por mais um ano a revisão das usinas, o MME elaborou um relatório que afirma que as garantias físicas das hidrelétricas que poderiam ser revistas chegavam a 40.749 megawatts médios (MW médios). As regras preveem que o percentual máximo de revisão de garantia de cada usina é de 5%.

Segundo o governo, esse valor, de 40.749 MW médios, é apenas 0,9% menor do que a soma das garantias vigentes. A conclusão do relatório é que o impacto da revisão seria baixo, de apenas 0,5%, do ponto de vista sistêmico. Quando se analisa individualmente, o número das usinas pode variar bastante.

Essas distorções levam a uma ineficiência coletiva, como quando há apenas um hidrômetro em um prédio, que esconde quem gasta mais e não estimula o indivíduo a economizar disse a fonte.

O tema começou a ser avaliado pelo governo em 2012, quando um estudo da consultoria PSR demonstrou que a falta da revisão da garantia física poderia colaborar com o fato de os reservatórios das hidrelétricas estarem em nível muito menor do que os previstos pelo ONS.

Outro estudioso do setor também avalia que a quantidade de energia hidrelétrica disponível no país está superavaliada. A necessidade de uma revisão das garantias físicas, segundo o consultor, já tinha sido apontada em 2001, no relatório sobre as causas do racionamento, elaborado pelo atual presidente da Sabesp, Jerson Kelman, na época diretor-geral da Agência Nacional de Águas (ANA).

O consultor e ex-diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) Afonso Henriques Moreira Santos disse que o valor das garantias físicas, além de ser importante para a receita das hidrelétricas, é fundamental para os cálculos de preço da energia e dos ganhos dos investidores deste mercado.

O governo não faz o cálculo porque não quer reconhecer que não tem a potência que informou. Furnas é a companhia que terá a maior perda, porque ficaria demonstrado que tem menos energia para vender disse Afonso Henriques.

O Tribunal de Contas da União (TCU) encontrou, em maio de 2014, durante uma auditoria, fortes indícios de que a capacidade de geração de energia no país era insuficiente para garantir a segurança energética e que entre as possíveis causas para o problema estava a superavaliação da garantia física das usinas.

Para tentar resolver o problema, determinou ao Ministério de Minas e Energia que, no prazo de 60 dias, montasse um plano de ação e um cronograma para a elaboração de estudos para a revisão ordinária das garantias físicas das usinas, marcada para 31 de dezembro de 2014. Porém, o MME apresentou recurso ao TCU pedindo o reexame do acórdão e, com isso, o processo foi suspenso.

As assessorias de imprensa da Agência Nacional de Águas (ANA) e do MME informaram que não iriam comentar o assunto e que qualquer dado estaria disponível no relatório publicado no site do ministério. A Aneel, porém, explicou que o tema não era de sua competência.

Em seminário da Coppe/UFRJ, Mário Veiga, presidente da consultoria PSR, afirmou ontem que o grande problema do setor elétrico hoje é a falta de conhecimento sobre a realidade das hidrelétricas. Ele avalia que a seca não é a responsável pela crise do setor, pois afirma que nos últimos três anos as chuvas atingiram 87% da média histórica.

Veiga contesta a informação de que há uma sobra de 6 mil MW médios no país, como afirma o governo. Segundo os cálculos do especialista, o país teria um déficit de 2 mil MW.

Se houvesse essa sobra de energia que o governo afirma ter, os reservatórios não estariam tão esvaziados disse.

O especialista fez uma simulação usando os dados do governo e concluiu que, se as informações fossem exatas, o país teria mais 22 pontos percentuais nos reservatórios do Sudeste além do que tem hoje.

Pinguelli Rosa ponderou que a redução do nível de armazenamento das hidrelétricas afeta a produtividade da geração de energia. Como os reservatórios têm formato irregular, que se assemelha mais a um tronco que a um paralelepípedo, quando se reduz sua capacidade, o impacto na geração de energia é maior. O nível dos reservatórios afeta a eficiência das hidrelétricas concluiu. (O Globo)
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