Duas vezes presidente do Banco Central – de 1992 a 1993 e de 1995 a 1997 – e hoje sócio-diretor da consultoria Tendências, Gustavo Loyola percebeu, no início do atual governo, que o Estado avançaria forte no setor elétrico. Assim como intimida o setor privado, essa política, para ele, desestimula o gosto das empresas pelo risco, já que engessa o modelo. A pior consequência disso pode ser um colapso no setor, como ocorrido no passado, diz Loyola. “Isso pode levar a um impasse fiscal como tivemos nos anos 80, com as grandes estatais afogadas em dívidas e o Estado sem a mínima capacidade de investimento.”
Como o sr. avalia o atual modelo do setor elétrico?
Algumas mudanças se faziam necessárias para evitar descompassos entre oferta e demanda futura de energia. Mas o ponto mais negativo é a excessiva dependência que esse modelo tem da participação estatal, sobretudo na geração.
Na época do lançamento do novo modelo, em 2003, o sr. antecipou que isso iria acontecer. Sua previsão se baseou em quê?
Quando se estabelece um modelo em que os riscos são elevados, isso tende a aumentar a participação do setor público, que serve como uma espécie de seguro, mas a grande dúvida é justamente o cálculo dos preços futuros e a forma de alocação da energia para consumidores cativos e livres. Houve também uma deterioração da qualidade das agências reguladoras como um todo nos últimos anos. No caso do setor elétrico, por exemplo, a criação da EPE foi um início de esvaziamento da Aneel.
O planejamento não precisava de uma empresa específica?
A Aneel tem como função regular e fiscalizar, não planejar.
O planejamento é necessário, sobretudo para os grandes potenciais hidrelétricos. Existe aí um limite tênue entre o que é o planejamento e o que é, de fato, o modelo rígido, fixado pelo Estado, em que o setor privado é reduzido à mera condição de prestador de serviços, numa situação em que você tira o risco privado. Ter uma atividade empresarial sem risco é quase um absurdo. O pêndulo foi para o lado oposto.
Qual foi a principal consequência disso?
Houve engessamento, tanto que estamos vendo hoje que o resultado prático é que a participação do setor privado tem crescentemente dependido de joint ventures ou associações com o setor público. E também nesse período alguns players se retiraram ou deixaram de investir.
Como explicar que, enquanto alguns se retiram, há os que estão se dando bem com esse sistema?
Há o ingresso de players que têm outros interesses associados ao setor elétrico. São grandes demandadores de energia ou empresas que atuam na construção civil ou pesada. Como as que trabalham com implantação de linhas de transmissão. Há também os investidores institucionais, que muitas vezes se associam a empresas estatais. De alguma forma eles julgam não estar correndo grande risco.
Que papel então caberia ao Estado em um modelo saudável?
É inegável a necessidade de participação do Estado na regulação, principalmente nesse setor. Já observamos em alguns países problemas derivados da excessiva desregulamentação. Não se deve, porém, confundir a participação do Estado como empresário com regulação.
É a Eletrobras querer se tornar a Petrobras do setor elétrico?
Exatamente. Estamos vendo isso acontecer em Belo Monte. E aí entra a participação paraestatal, que são os fundos de pensão de estatais cujo controle está muito ligado às próprias empresas. Não tenho nada contra os fundos de pensão estarem nesse tipo de atividade. Até porque eles buscam retorno de longo prazo. Mas a concentração é cada vez maior.
Qual é o risco?
Os fundos devem ter sua governança e decidir por si se devem aplicar no setor A, B ou C ou na empresa X, Y ou Z, e não atender ordens do planejador central. No mundo inteiro essas instituições tomam participações minoritárias, e normalmente participações que são líquidas. Ou seja, que podem ser vendidas ou compradas em bolsa de valores.
Os fundos foram obrigados a entrar em Belo Monte?
Acho louvável a determinação do governo de construir a usina, mas ele não foi capaz de gerar um projeto que fosse atraente o suficiente para os investimentos privados. Tem de haver discussão, todos os prós e contras devem ser pesados do ponto de vista dos vários custos e benefícios desse projeto. Foi-se dependendo cada vez mais dos recursos controlados pelo governo, ou mesmo de empresas que têm outros interesses no projeto. Interesses na área de construção, de fornecimento de equipamentos, do lado da demanda, inclusive.
Qual seria a melhor forma de modelar esse projeto?
O governo tem de atuar para mitigar os riscos onde eles existem e não podem ser mitigados. Como, por exemplo, em projetos que têm retorno social acima do retorno privado. A grande dificuldade é que isso pode levar a um impasse fiscal como tivemos nos anos 80, com as grandes estatais afogadas em dívidas e o Estado sem a mínima capacidade de investimento.
Há excessiva alocação de recursos do BNDES no setor?
Não. Vejo o BNDES como um banco que tem de atuar onde de fato há carência de recursos privados. O setor de infraestrutura em geral no Brasil é um setor que deve estar na mira do banco. O que critico mais é quando o BNDES atua em segmentos em que há capital privado disponível e onde nosso mercado de capitais está disposto a investir ou há investidores estrangeiros.
O acesso aos recursos do BNDES está acontecendo em condições equânimes?
Teoricamente sim. Mas o grande problema é que, como o BNDES tem uma agenda muito grande, inclusive uma agenda que julgo totalmente equivocada, como a de criar os “vencedores nacionais”, o banco então está tendo carência crônica de recursos. E começa a recorrer a mecanismos cada vez mais heterodoxos como, por exemplo, aportes do Tesouro. A consequência disso é o aumento da dívida pública.
O governo quer mesmo consolidar o setor elétrico, sobretudo a distribuição?
Há situações em que talvez a consolidação seja inevitável. São companhias que atuam em áreas, regiões, que não são capazes de gerar retorno. Talvez existam economias de escala e de escopo na consolidação.
É um projeto saudável, portanto?
O que não se pode é tentar criar situações artificiais. Vejo com certo receio a repetição de um problema que tivemos entre os anos 50 e 60. O setor privado detinha a distribuição em algumas regiões e se desinteressou por falta de retorno adequado. Houve uma deterioração muito rápida da qualidade do serviço. É preciso ter uma regulação que exija do concessionário a manutenção da qualidade do serviço, mas, por outro lado, não se pode perder de vista que o concessionário não é um benfeitor, ele está ali para ganhar dinheiro.
A Aneel chegou a falar em equalizar de novo as tarifas.
Não vi essa discussão avançar, mas acho que é um retrocesso. É importante que a tarifa reflita as condições de oferta e demanda em cada região e em cada circunstância. A modicidade é importante dentro de certos parâmetros e limites. Há espaço para uma política que eventualmente venha assegurar o acesso a camadas mais desfavorecidas. Mais importante do que ter a modicidade, porém, é ter razoável previsibilidade. Importa as empresas e pessoas terem razoável confiança de que não vai faltar energia e de que o preço não vai ser multiplicado por 20 de repente.
A modicidade da forma que o governo persegue é possível?
Viabiliza-se a modicidade tarifária de um lado, muitas vezes com subsídios, e do outro lado há outro ente público taxando o consumo. É paradoxal, algo difícil de entender, mas que resulta basicamente dos diferentes interesses da União e dos estados. Os estados têm interesse maior em maximizar a arrecadação com omenor esforço possível. Eles querem o dinheiro fácil da conta de luz.
Há solução para a carga tributária embutida na tarifa?
O Brasil hoje tem tarifas elevadíssimas, e as empresas intensivas em energia já não são mais competitivas. É um absurdo perder essas indústrias, mas é difícil fazer reforma tributária no Brasil porque depende dos estados, e eles têm interesses diferenciados, como aquela velha discussão se o ICMS tem de ser cobrado no destino ou na origem. E o governo federal – não falo especificamente do atual, mas também do governo FHC – até agora não se animou a liderar esse processo. Com isso, a energia fica sendo um custo Brasil também.
O mercado livre cumpre seu papel de solução alternativa às tarifas?
Esse mercado avançou, mas poderia ter avançado mais. Sua trajetória foi prejudicada pela crise de 2001, depois pela mudança do modelo. O que atrapalha muito é ter um mercado livre que acaba não sendo tão livre assim, porque os participantes antecipam que têm um piso e um teto de preço, ou que pode haver, de alguma forma, interferência regulatória, seja na oferta, seja nos leilões, que vai mudar o preço. O governo tem muitos poderes para mudar as normas, os parâmetros do setor e de repente mudar o preço. Então, aquilo que se contrata achando que era barato torna-se caro.
A termeletricidade a óleo é outro fator que pressiona os custos.
A Petrobras não poderia ter uma política mais transparente para a oferta de gás?
Se no setor elétrico houve de fato uma privatização, ainda que incompleta, no setor de petróleo e gás a Petrobras reina sozinha. Virou uma grande empresa, e a solução de certos conflitos de interesse fica mais complicada dentro dela mesma. Aí há necessidade de regulação. Tem de haver um planejamento para que os projetos, ao saírem do papel, tenham uma fonte assegurada de gás. As coisas acabaram se ajeitando com o andar da carruagem.
Qual é o futuro do setor elétrico, tendo em vista o cenário político atual?
Sou otimista. Uma das razões é o fato de termos fontes de energia diversificadas e abundantes. Se houver algum problema, não será por falta de energia. A grande preocupação é prevalecer a ideia de que o governo tem de ter suas empresas operando nos segmentos de infraestrutura. Isso pode gradualmente expulsar desse mercado o setor privado, que ficará relegado apenas ao papel de fornecedor de insumos. É fundamental, no setor de energia, que se tenha um preço justo. Não deve ser tão cara a ponto de prejudicar a competitividade do país, mas também não deve ser barata demais que leve a um desperdício. (Revista Brasil Energia)
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