sexta-feira, 9 de julho de 2010

Jerson Kelman: A visão de um veterano

Jerson Kelman opina sobre o texto Considerações sobre a Energia Elétrica no Brasil, princípio de 2010.

No início de 2010, fui convidado por Antônio Dias Leite para uma conversa. Para os que não sabem quem é Dias Leite, informo que esse ilustre e erudito professor emérito da UFRJ foi ministro de Minas e Energia por mais de cinco anos, de 1969 a 1974, e é autor de diversos livros sobre energia e economia.

A conversa objetivava colher elementos que lhe permitissem enunciar os principais assuntos do setor elétrico a merecer aperfeiçoamento legal, institucional, tecnológico ou metodológico nos próximos 20 anos. Procedimento similar foi feito com outros 25 especialistas do setor. Ao final do mútuo aprendizado, com olhar matreiro, Dias Leite me disse que, como estava completando 90 anos, situava-se acima do bem e do mal. Queria dizer que suas reflexões provavelmente seriam mais bem-aceitas do que se fossem formuladas por alguém na ativa, ainda disputando espaços de poder.

Meses depois recebi o texto Considerações sobre a Energia Elétrica no Brasil, princípio de 2010. Destaco alguns trechos que, na minha percepção, constituem os principais elementos do pensamento de Dias Leite:

“Estamos convivendo, no setor elétrico, com um confuso quadro institucional decorrente de duas reformas sucessivas, a primeira não completada, e a segunda com lacunas...”
“Descartando-se a hipótese de mudanças constitucionais, é oportuno analisar, em uma primeira aproximação, os obstáculos realisticamente passíveis de remoção...”
“É preciso ter presente, todavia, que a sociedade está cansada e descrente de reformas. Qualquer iniciativa há de evitar a construção de terceiro modelo institucional do setor elétrico, a superpor-se à pilha que se formou desde 1993.”

“É nítida a diferença de escala da capacidade de atendimento entre as hidrelétricas e as novas renováveis, que não podem realisticamente substituir as grandes usinas que não vierem a ser construídas. A real alternativa para essa substituição será térmica, a gás natural ou carvão mineral.”

“Parece consolidada a ideia dos leilões A5 e A3... Persiste dúvida, todavia, sobre a conveniência de leilões abrangentes ou especializados por fonte de energia. Como as usinas correspondentes a cada tipo e fonte têm características técnicas próprias e custos predominantemente fixos ou variáveis (combustível), torna-se complexo o critério para comparação nos leilões abertos a todas as modalidades. A prova da dificuldade intrínseca de construir critério objetivo se encontra na necessidade de extensa e erudita exposição da EPE que trata da construção de um índice que inclua os diversos fatores relevantes para tomada de decisão.
O resultante índice custo/benefício - ICB se apoia no modelo matemático de médio prazo (cinco anos) que é utilizado pelo ONS em sua programação operacional. Os resultados da aplicação desse índice deram lugar, aliás, a opções pelo menos infelizes, como é o caso das usinas a óleo combustível no Nordeste do país. “Valeria a pena considerar a hipótese dos leilões especializados, cuja definição decorreria das diretrizes nacionais de participação relativa de cada fonte na matriz elétrica do país”.

Vou me fixar nesse último ponto. Como regulador, sempre me manifestei contrariamente aos tais leilões especializados. Achava que todas as fontes deveriam competir num único certame e que ganhasse quem melhor servisse ao consumidor. Para isso havia sido desenvolvido o cálculo do ICB, cujo conceito defendi ferrenhamente, quando a ideia foi desenvolvida.

Mas o diabo mora nos detalhes. Como bem apontou Dias Leite, a realidade é que não descobrimos um método razoável para comparar peras e laranjas. O que estou dizendo é que mudei de opinião e concordo com Dias Leite no sentido de que, no mínimo, deveria ser considerada a hipótese de leilões especializados. Com isso, caberia ao CNPE ou ao Congresso Nacional a responsabilidade de decidir qual percentual da matriz de energia elétrica deveria ser reservado para cada fonte energética.

Sem dúvida, uma matriz energética decidida dessa forma viraria palco de intensa negociação política, nos moldes do que ocorre anualmente para aprovação do Orçamento da União. Por outro lado, as entidades de licenciamento ambiental e regulatório teriam a obrigação legal de aprovar empreendimentos para licitação cuja soma resultasse na parcela da expansão de geração a ser atendida pela fonte energética considerada. Nesse cenário ideal, até os mais radicais procuradores da linha ideológica anti-hidrelétricas teriam de se curvar ao que viesse a ser uma decisão soberana do Congresso Nacional. AUTOR: Jerson Kelman (Revista Brasil Energia)
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